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A ética e o auxílio emergencial

“A ética é um valor fundamental, que deve ser cultivado não apenas nas
decisões da instituição, mas também dos seus colaboradores.”

Foi com este texto que o Itaú, maior banco privado brasileiro, justificou a
demissão de 50 funcionários que em 2020 receberam, indevidamente, o
auxílio emergencial oferecido como alívio temporário durante a pandemia da
Covid-19. Afinal, citando parte de seu código de ética: “satisfazer interesses
particulares em detrimento do bem comum é inaceitável”.
Tenho dito que a ética, assim como a democracia, que inclui a diversidade em
todos os sentidos, são ideais de mundo, não são coisas concretas e plenas de
existência que enxergamos todos os dias, como é a luz do sol, que a gente vê
diariamente.
Esses conceitos são uma luta diária para se chegar um dia, talvez, em sua
plenitude, e há dias que a gente procura e não vê. Só que é preciso todos os
dias lutar por eles, para que não haja retrocessos daquilo que ontem a gente caminhou um pouquinho apenas, pois retrocessos insistem em aparecer a todo
instante.
Nesse sentido, a Lei Federal 12.846 de 2013 (Lei Anticorrupção) é um avanço
para o mundo empresarial, já o desrespeito a ela e a falta de punição é um
retrocesso.
Mas será que a lei por si só basta?
“Se a pessoa puder mentir, trapacear e roubar, e nunca ser pega, por que
deveria ser honesta?”
Esse foi o desafio que Glaucon, irmão de Platão, nos lançou há 2 mil anos e
ainda hoje é o grande desafio da ética empresarial.
Dados de pesquisa internacional revelam que as maiores fraudes, em valor
financeiro, são praticadas por gerentes, diretores e sócios, e as justificativas
mais dadas são: viverem além dos próprios meios e alegarem dificuldades
financeiras.
São os indivíduos que construíram um status social que não pode ser mantido
apenas com os ganhos regulares (salários, bônus etc) e, portanto, precisam de
uma renda extra, às vezes até mesmo por conta de seu próprio descontrole
financeiro.
E fraude é qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com o intuito de lesar
ou ludibriar outrem, ou de não cumprir determinado dever.
Assim, teria o indivíduo a capacidade de resistir às tentações diante de si,
quando essas possibilitam ascensão social, dada a baixa probabilidade de ser
pego?
Donald Cressey ainda nos anos 50 compreendeu que fraudes ocorrem quando a
oportunidade, a pressão e a racionalização se fazem presentes.
O auxílio emergencial era uma oportunidade. Muitas pessoas estavam
pressionadas pela falta de recursos financeiros ou pela mera possibilidade de
comprar algo com esse dinheiro extra. E a racionalização? Bem, esse é o
momento em que o indivíduo pondera com sua cabeça, credos, crenças,
valores e avalia o risco sobre o que fazer diante da oportunidade e da
pressão.
Notícias mostram que um terço das classes A e B brasileira pediu o auxílio
emergencial – 3,9 milhões de famílias mais ricas tiveram algum membro
recebendo ajuda emergencial criada para apoiar pessoas pobres.
Bem, sendo o indivíduo da classe A ou B, ele já nem poderia ser enquadrado
para receber o benefício, já que só deveriam ser aprovados os pedidos
daqueles que tinham renda individual de até R$ 522,50 mensais ou familiar de
até R$ 3.135 (três salários mínimos) valores que estão percebidos no máximo
na classe C.
Com isso, temos um argumento para demitir mais do que apenas 50 pessoas
Brasil afora, pois estelionato e falsidade ideológica são crimes.O argumento clássico que essas pessoas deram para tal ato foi pura
racionalização, elas alegaram que como sempre pagaram impostos e nunca
tiveram nada em troca do governo, aproveitaram para cobrar a fatura.
Ora, o que é isso se não fraude?
Na fraude o indivíduo satisfaz seus interesses particulares em detrimento do
bem comum, o que é inaceitável, como disse o banco.
Agora, um pouco de pimenta na discussão, será que um escrutínio em todas as
declarações de imposto de renda de todos os funcionários, não apenas desta
instituição, e sem restrições de posição hierárquicas, também não justificaria
outras demissões, pela mesma lógica de apossar-se do dinheiro que não é seu,
mas do bem comum?
Deixo aqui um ponto de reflexão, dito pelo dissidente soviético Alexander
Solzhenitsyn: “se apenas pessoas malignas em algum lugar insidiosamente
cometessem más ações seria necessário apenas separá-las do resto de nós e
destruí-las. Mas a linha que divide o bem e o mal corta o coração de todo ser
humano. E quem está disposto a destruir um pedaço do seu próprio coração?”
Schopenhauer disse que o estudo do belo não produziu nenhum artista, assim
como o estudo da moral não produziu um homem honesto, mas que em
hipótese alguma isso deveria deixar de ser estudado, é que para ele, o que
vale é a prática e não o discurso.
Se não existe sociedade que opere sem a dualidade: punições e recompensas,
do mesmo modo, se queremos paz precisamos lutar por justiça.
Assim, não se pode ter seletividade no tipo de má conduta, e por isso
mecanismos de Compliance efetivos devem apresentar alguns pilares mestres:
Vontade: ou o famoso “tone at the top”, se a alta liderança não quer de
verdade, não adianta, não haverá um programa efetivo. Não à toa o Decreto
federal 8.420/15 que regulamenta a lei 12.846/2013 apresenta no artigo 42
que o comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os
conselhos, deve ser evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa.
O segundo elemento é a Comunicação. Não adianta a liderança querer se ela
não contar para a organização que ela quer, e se ela contar que quer, mas na
prática mostrar que não quer. Não tenha dúvida que em pouco tempo o
programa cairá em completo descrédito.
A organização precisa de um ferramental eficiente de comunicação que
chegue a todos. Desde ferramentas de treinamento, que esclareçam tudo que
é ou não uma conduta antiética, até um canal de denúncias e de apuração de
investigação e da devida punição em casos onde se confirme a conduta
indevida.
E, por último, o mais importante: uma Cultura de Compliance, onde se possa
ver que maus exemplos são punidos e os bons, reconhecidos. Inclusive, caso
necessário, é essencial sair de negócios e desistir de projetos contaminados
com corrupção. É impossível ter uma cultura de Compliance, onde as pessoas
sabem que o que está afixado nas paredes e telas (valores) não é vivido junto a clientes e fornecedores, muito menos percebido na liderança da
organização.
O caso dos 50 demitidos do Itaú mostra que não há organização imune à
corrupção. Vale destacar que organizações são feitas de pessoas, e pessoas
cometem erros, e por isso se faz necessária a intensificação dos mecanismos
de controle por parte da sociedade, além dos investimentos em educação,
conscientização e toda receita de bolo que já sabemos.
Ética é um processo diário, não um evento único, é a busca por um ideal
construído todos os dias em nossos pequenos atos. E precisamos nos perguntar
sempre: estou contribuindo com o bem comum ou apenas satisfazendo meus
interesses?
Como bem disse Immanuel Kant: “Tudo que não puder contar como fez, não
faça”.
*Emerson Weslei Dias é consultor de carreira, VP de Capital Humano na
ANEFAC e leciona temas ligados à ética empresarial, compliance e
comportamento humano na FIPECAFI, FIA Business School e Trevisan Escola de
Negócios.

Fonte*Blog Fausto Macedo / Estadão

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