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O xadrez atuarial da previdência dos servidores
“Percebe-se que o estudante superou certo nível no xadrez quando passa a
cogitar pequenos deslocamentos da torre” – Marco Antônio Barbosa
Ao menos é assim que me recordo da lição do mestre quando eu era um
enxadrista iniciante no clube chapecoense, tantos anos atrás. À época, a
mensagem apenas me impressionou como um enunciado enigmático. Eu sabia
repetir, não tanto explicar. Com o tempo, submergiu em um recôndito da
mente, onde memórias queridas decantam. Dois fatos recentes a reavivaram
na lembrança, entretanto.
O primeiro foi minha experiência ensinando o jogo às minhas filhas. Elas se
apressam em destravar as torres, menosprezando a estrutura de peões,
somente para precipitar a poderosa peça ao centro do tabuleiro, perdendo-a
prematuramente, revés do qual não convalescem. Por vezes, chateadas,
pedem a torre de volta.Sim professor, as pequenas melhorias de posição paulatinamente se acumulam
e acabam por sobrepujar o oponente mais adiante. Agora vejo. Obrigado.
Acaso se tratasse de um jogo de vencer logo aos primeiros lances, se
irrelevante o que viesse depois, talvez a aventura se justificasse, mas não é
assim. O jogo prossegue após o afogadilho que caracteriza seu início.
Percebi, entretanto, que as torres – e o xadrez – podem funcionar como
alegorias para os extraordinários dilemas que nos oprimem enquanto pessoas,
instituições e estados, na disputa pelos escassos bens da vida. Uma disputa
que amiúde envolve renúncia de satisfação presente em favor de
consolidações e avanços que podem parecer pífios, mas, confia-se, acumularse-ão, e favorecer-nos-ão depois, no inescrutinável porvir. O que me leva ao
segundo fato.
Há um grande compromisso financeiro com a previdência social dos
funcionários públicos brasileiros. Um monolito de surpreendentes dimensões
que se estira no tempo, encobrindo o sol das contas públicas. Há três formas
de evidenciar o estado dessas obrigações. Ou se reconhece uma despesa
continuada, caso em que o gasto deve ser incluído na Despesa Total com
Pessoal; ou se reconhece uma dívida futura, caso em que deve ter apurado o
valor presente na Dívida Consolidada; ou, ainda, se houver reserva atual de
fundos aptos, livres e suficientes – a melhor situação de todas – o passivo
líquido nem mesmo existe, e a sombra se levanta.
Cada uma dessas estratégias encontra prescrições e limites na Lei de
Responsabilidade Fiscal: a despesa com pessoal não pode ultrapassar 60% da
receita (art. 19, III); a dívida não pode ultrapassar 120% da receita (art. 30, I
c/c art. 3º, II resolução SF 40/01); e os fundos ficam definitivamente retidos,
não podendo ser devolvidos para o ente (art. 43, §2º, II c/c art. 167, XII
CF/88).
Em nossa pequena alegoria enxadrística, esses fundos aptos, livres e
suficientes, cumprirão o papel de torre. Trata-se da reserva do plano
previdenciário que, muito embora pareça forte na desesperadora situação em
que nos encontramos, em verdade é frágil, vocacionada a frutificar ao seu
tempo e modo.
Há iniciativas para destravar as torres, sacrificando-as prematuramente ao
centro do tabuleiro. Refiro-me à alteração do art. 19, §1º, VI, “c” da LRF – já
realizada pela Lei Complementar 178/2021 -, à alteração do art. 60 da
Portaria 464/2018 – ainda em fase de análise – e à prática de contabilizar
receitas futuras – tais como royalties – como se fossem recursos atuais e
livres. Todas, em variadas medidas, embaralham os conceitos de dívida,
fundos livres e despesa de pessoal que, assim misturados, podem vir a ser
contabilizados de forma a escapar às graves consequências estabelecidas em
lei.
Quanto à vontade de sacrificar a torre ao início do jogo, parece-me um erro,
mas os erros recaem exclusivamente sobre o jogador, formulador da política
financeira, que terá de conviver com as escolhas que fizer. Fica a mensagem,
que talvez recobre sua perspectiva conforme se esvaírem os anos.
O que não se pode é consumir esses recursos e impor à contabilidade que se
comporte como se lá eles ainda estivessem. Voltar as costas para o passivo atuarial dos Regimes Próprios não o torna ausente e insubstancial como um
fantasma, muito ao contrário, transforma-o verdadeiramente em fantasma.
Enfim, ainda que se cogitem as desesperadas medidas, não é possível perder a
torre prematuramente no jogo e fingir que ela está de volta.
*Alexandre Manir Figueiredo Sarquis, doutorando em Direito Financeiro USP,
professor da FIPECAFI e conselheiro substituto do TCE-SP.
Fonte*Blog Fausto Macedo / Estadão
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