​​

Notícias

Não cabe cobrar ISS sobre receita presumida de profissões liberais Igor Mauler Santiago, Alexandre

Segundo o artigo 9º, parágrafos 1º e 3º, do Decreto-Lei 406/68 — recepcionado
pela Constituição de 1988 como lei complementar de normas gerais em
matéria de ISS (Súmula 663 do STF) e que sobreviveu à Lei Complementar
116/2003 (STJ, 1ª Turma, REsp. 1.016.688/RS, relator ministro José Delgado,
DJe 5/6/2008; STJ, 2ª Turma, REsp. 713.752/PB, relator ministro João Otávio
de Noronha, DJe 26/10/2006) —, as sociedades das profissões regulamentadas
ali referidas ficarão sujeitas ao ISS calculado 1) “por meio de alíquotas fixas
ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores
pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de
remuneração do próprio trabalho”; dando-se esse cálculo 2) “em relação a
cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em
nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos
da lei aplicável”.
Trata-se do chamado ISS per capita, exceção à regra de que a base de cálculo do imposto é o
preço do serviço. A renitente insubmissão dos municípios a esse regime manifesta-se sob as
mais diversas roupagens. Ora se condiciona o seu gozo a requisitos não previstos no decreto-lei,
como a inexistência de filiais, a adoção da forma de sociedade simples (vedada a forma limitada),
a apresentação de requerimentos anuais ou a vedação à colaboração eventual de outros
profissionais ou empresas. Sobre o tema, o STF decidiu recentemente que “é inconstitucional lei
municipal que estabelece impeditivos à submissão de sociedades profissionais de advogados ao regime de tributação fixa em bases anuais na forma estabelecida por lei nacional” (Pleno, RE 940.769/RS, relator ministro Edson Fachin, DJe 12/9/2019).
Ora se estabelece um sistema híbrido, como faz o Código Tributário Municipal de Teresina (Lei Complementar Municipal 4.974/2016), que define uma alíquota ad valorem (3% para a advocacia) e um imposto mensal per capita bastante elevado para a realidade local e mesmo nacional (R$ 730 de ISS por advogado/mês, o que — considerando a alíquota de 3% — supõe um
faturamento anual superior a R$ 583 mil para um escritório com dois membros), impondo à sociedade o dever de recolher ao fim do exercício o ISS calculado pelo primeiro sistema que supere aquele devido com base no segundo. A matéria foi objeto de mandado de segurança coletivo impetrado pela OAB-PI, em que ficou decidido com trânsito em julgado que cabe à sociedade de advogados escolher o regime que lhe for mais favorável, o ad valorem ou o per capita (TRF da 1ª Região, 7ª Turma, Apelação/Reexame
Necessário 0000597-41.2014.4.01.4000/PI, relator desembargador Federal Hércules Fajoses, DJe 6/9/2019).
Ora, e com isso chegamos ao tema deste artigo, se presume a receita bruta mensal da sociedade a partir do número de profissionais que nela atuam, para sobre essa base fazer incidir a alíquota ad valorem. Foi o que fez o município de São Paulo com a Lei 13.701/2003 (R$ 800 por profissional/mês — artigo 15, inciso II), agora alterada pela Lei 17.719/2021, que veicula a seguinte tabela:
Quantidade de Profissionais Habilitados A tabela aplica-se de forma isolada a cada faixa, de sorte que um escritório
de advocacia com 15 profissionais terá receita mensal presumida de R$ 84.976,30 [(R$ 1.995,26 x 5) + (R$ 5.000,00 x 5) + (R$ 10.000,00 x 5)], e deverá ISS de R$ 4.248,81 por mês, dada a alíquota de 5%. Antes de tratarmos da constitucionalidade material dessa tabela, cabe
perquirir a compatibilidade do próprio regime de receita presumida (qualquer que seja o valor por profissional/mês adotado) com a norma geral de ISS. A eventual dissintonia daquele com esta acarretará a sua invalidade por ofensa a norma de superior hierarquia e mesmo a sua inconstitucionalidade formal, por invasão do campo reservado à lei complementar. E a inconsistência é flagrante, visto que o artigo 9º, parágrafo 1º, do Decreto-Lei 406/68 veda terminantemente a utilização da “importância paga a título de remuneração do próprio trabalho” como critério para o cálculo do ISS na situação em análise, pouco importando se esta é aferida de maneira direta ou indireta. De
fato, muito poucas força e utilidade teria a norma geral se fosse possível burlá-la de forma tão singela e escancarada. Basta pensar que a contestação do critério no caso concreto pressuporia nada menos que a abertura da receita efetiva da sociedade e o pedido de que a tributação se fizesse com base naquela, por ser inferior à receita presumida — exatamente como
ocorreu no caso de Teresina.
Isso, a nosso ver, resolve a questão. Mas há mais, pois a nova tabela, da forma como concebida, viola os princípios da igualdade (CF, artigos 5º, caput, e 150, inciso II), da capacidade contributiva (CF, artigo 145, parágrafo 1º) e da razoabilidade (CF, artigo
5º, inciso LIV — due process of law em sua vertente substantiva), padecendo também de clara inconstitucionalidade material.
A respeito da igualdade, é clássica a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello no sentido de que o critério de discriminação adotado pelo legislador — aqui, o número de profissionais atuantes na sociedade — deve ser compatível com o tratamento dispensado
aos sujeitos atingidos pela lei — aqui, maior ou menor tributação —, desde que tal distinção não afronte valores
constitucionais [1]. Pois bem: nada garante — para ficarmos na advocacia, e dando de barato que a receita pudesse ser um critério de cálculo do ISSincidente sobre essa atividade — que um escritório com maior número de advogados obtenha maior faturamento per capita do que um com poucos profissionais. Pois é isso, e não apenas um maior faturamento em valores absolutos (que também poderia ser contestado, mas se aproximaria melhor de quod plerumque accidit), que prevê a tabela. A comparação de um pequeno
escritório de pareceres mantido por um professor eminente com um numerosíssimo escritório de contencioso de massa ou de acompanhamento de processos para terceiros basta para mostrar a falibilidade do critério.
No encontro da igualdade com a capacidade contributiva, tem-se que o fator de desigualação adotado na lei — pelas mesmas razões acima enunciadas — afronta esse último valor constitucional, incorrendo na censura consignada na cláusula final da definição de Bandeira de Mello acima reproduzida. Por fim, na lição de Humberto Ávila [2], a razoabilidade “exige a harmonização das
normas com as suas condições externas de aplicação”. E não parece crível que, num escritório com cem advogados, a metade gere R$ 50 mil mensais de receita (R$ 600 mil por ano), havendo apenas 20 que gerem R$ 10 mil mensais
ou menos, numa manifesta inversão da pirâmide de captação e de senioridade observada nesse segmento.
Nem cabe comparar o regime de receita presumida para fins de ISS com o lucro presumido para fins de IRPJ e CSLL, pois aquele — ao contrário deste último (a que o contribuinte só adere se quiser) — é obrigatório. Ou seja:
trata-se de norma impositiva, da qual os municípios não podem se afastar e tampouco — como é natural — se valer para exigir tributação confiscatória, como se fez no multicitado caso de Teresina. A solução ali dada pelo
Judiciário, embora tenha gerado resultado razoável, não deixa de ser heterodoxa: mais adequado do que permitir a opção pelo cálculo ad valorem, que a lei complementar veda, a nosso ver teria sido a invalidação da alíquota
per capita estabelecida (R$ 730 por advogado/mês), com aplicação da anterior que fosse compatível com o não confisco ou, não havendo esta, com o afastamento puro e simples da tributação até que um patamar aceitável
fosse fixado por lei — decerto com observância da anterioridade anual e
nonagesimal. Por essas razões, expostas de maneira sumária, mas suficiente, entendemos
que a nova lei paulistana tende a ensejar um grande contencioso — o qual, a prevalecer o direito estrito, há de findar com mais uma vitória dos contribuintes.
[1] Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3 ed. São Paulo: Malheiros,
2001.

[2] Teoria dos Princípios: da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 5
ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 143-144. Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados, mestre
e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT). Alexandre Evaristo Pinto é conselheiro titular da Câmara Superior de Recursos Fiscais da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro titular da 2ª Seção do Carf,
doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito Comercial pela USP e professor do Instituto Brasileiro de Direito
Tributário (IBDT) e do mestrado profissional em Controladoria e Finanças da Fipecafi.
Caio Augusto Takano é advogado, professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutor e mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, coordenador do MBA em
Gestão Tributária da Faculdade Fipecafi, sócio no escritório Takano | Przepiorka Advogados.

Fonte* Portal Contabil

Link da Matéria 



Link